nas fotos está a ville radieuse, uma das unité d'habitation do corbusier em marselha, onde vivi em 76 e um bocadinho de 77. o meu pai estava a fazer investigação para o doutoramento e lá fomos todos. na altura as unité d'habitation estavam um bocadinho caídas em desgraça, daí as rendas acessíveis (uma sorte do caraças, hoje em dia a coisa é muito diferente). os edifícios têm como conceito a cidade vertical: cada edifício deve procurar a auto-suficiência. do que me lembro, do que me servia, era das lojas e da escola primária.
acho que são do edifício do corbu as minhas primeiras recordações (com excepção de uma memória difusa em que duas mãos gigantes me estão a dar banho numa banheira minúscula). a 1ª ida à escola primária (um espaço fantástico), e a hiperbólica experiência de ir comprar pão sozinha. a cool mum no outro dia falou nisso e eu que pensava que era só comigo. com 4 anos eu saía sozinha de casa, subia uns lances de escadas, chegava a um balcão, olhava para cima (muito para cima) e dizia uma frase que me saía com a satisfação duma punch line: "une baguette, s'il vous plait". voltava para casa a sentir-me a MAIOR, e com o troféu na mão.
eu e as minhas irmãs, com 4, 5 e 6 anos, apropriámo-nos completamente do edifício do corbu. víamos televisão depois da hora de deitar escondidas mas muito visíveis na mezzanine (só fomos apanhadas uma vez por nos rirmos envergonhaditas com um beijo). entrávamos pela caixa do correio (não me perguntem como, mas entrávamos). uma vez perdi-me nos elevadores e imaginei-me a passar toda a minha vida em marselha sem encontrar a minha família (a tendência dramática revelou-se precoce).
depois voltámos para lisboa e foi um sacrifício andar no bom sucesso, tão escuro, de janelinhas tão pequenas e com claustro (odeio claustros, na altura e ainda hoje, causam-me horror).
hoje em dia quando me lembro que vivi num edifício do corbu acho inacreditável. e quando penso ou discuto a importância de arquitectura para a geração de vivências, educação estética e ética, como contributo de cidadania, é nesta experiência da minha infância que penso primeiro. e lembro-me sempre do raio das baguettes.
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